Direito de não devolver valores recebidos de boa fé

A percepção de vantagem, ainda que indevida no contracheque, tem caráter alimentar, cuja boa-fé presumível torna inviável eventual restituição de valores ao erário requerido pela Administração, que tardiamente constata seu erro.

Trata-se aqui de vinculo entre servidor público e Administração.

Inumeros são os erros administrativos que quando constatados levam a uma redução salarial inadmissivel no contracheque do servidor público a ela vinculado, seja com o pagamento de uma rubrica indevida, ou de um valor a maior que o devido, ou ainda pela ausencia de supressão de uma rubrica ao tempo que deveria ocorrer.

Tais pagamentos quando constatados pela Administração Pública, de imediato, resulta em notificação ao servidor público da efetiva regularização da rubrica e ainda os notifica para devolverem o que receberam a maior pelo periodo em que supostamente assim o receberam.

Todavia, a reposição ao erário imposta pela Administração, quando constatado erro encontra obstáculos nos princípios da proteção da boa-fé e da Segurança Jurídica, além de afrontar a jurisprudência pacífica dos Tribunais pátrios. Os valores percebidos pelos servidores em seu contracheque são irrepetíveis, haja vista o evidente caráter alimentar bem como a boa-fé com que foram percebidos.

Totalmente desarrazoado exigir do servidor público a devolução desses valores, com efeito, sopesando os princípios da segurança jurídica e da proteção da boa-fé – que claramente estão a proteger o direito do (a) servidor (a) de não sofrer descontos –, com o instituto previsto no art. 46, da Lei nº 8.112/90, resta evidente que, diante da pirâmide do ordenamento jurídico, aqueles devem prevalecer, não sendo possível, portanto, efetuar os descontos na remuneração do servidor vitimado pelo erro da Administração que indevidamente concedeu tais valores.

Nesse contexto, ainda que se alegue a necessidade de estrita observância do princípio da legalidade por parte da Administração, também é imprescindível à preservação do Estado de Direito a proteção da boa-fé ou confiança que os administrados têm na ação do Estado, quanto à sua lealdade e conformidade com as leis. O princípio da segurança jurídica, visa, assim, proteger a confiança dos administrados que acreditaram na legalidade dos atos praticados pela Administração (PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS), conferindo estabilidade a todo o tráfego jurídico

As verbas recebidas de boa-fé, devem ser preservadas, não sendo razoável exigir-se, quanto mais sob pretexto de exercício da autotutela, a devolução de valores unilateralmente estabelecidos pela Administração, o que acarreta insegurança quanto a verba alimentar.

Sobre a proteção da confiança e boa-fé dos administrados, Paulo Modesto assinala:

“Nas relações com os administrados, a boa fé assegura a proteção da confiança, valor fundamental no Estado de Direito, uma vez que oferece vedação a toda atuação contrária à conduta reta, normal e honesta que cabe desejar no tráfego jurídico, assegurando também os efeitos jurídicos esperados justificadamente pelo sujeito que atuou de boa fé.

O dever de agir de boa fé, para manter a confiança mútua entre os sujeitos da relação, além disso, obriga também a um dever de coerência no comportamento (GONZALEZ PEREZ) e de fidelidade às declarações feitas a outrem (KARL LARENZ). Isto obriga os sujeitos da relação a responderem por todo o desvio contrário a uma conduta leal, sincera e fiel no trato jurídico”.

(Controle Jurídico do Comportamento Ético da Administração Pública no Brasil, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 209: 71-80, jul./set.1997).

Portanto, a Administração, ao rever o ato, deve, na pior das hipóteses, declarar que os efeitos da revisão são ex nunc, ou seja, dali para a frente, sem que o servidor seja apenado com o comprometimento até mesmo da sua sobrevivência. Isso o que se extrai do entendimento do Tribunal de Contas da União, segundo o qual “o julgamento, pela ilegalidade, das concessões de reforma, aposentadoria e pensão, não implica por si só a obrigatoriedade da reposição das importâncias já recebidas de boa-fé, até a data do conhecimento da decisão pelo órgão competente” (Súmula nº 106).

Vejamos, ainda, o que dispõe a Súmula nº 249 do aludido Tribunal:

SÚMULA Nº 249 TCU

“É dispensada a reposição de importâncias indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação de lei por parte do órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função de orientação e supervisão, à vista da presunção de legalidade do ato administrativo e do caráter alimentar das parcelas salariais”. (grifou-se)

É fato, ainda que se o servidor público, foi obrigado a devolver eventuais valores recebidos em decorrência de erro administrativo, deve se socorrer do judiciario para obter a devolução desses valores, ou se tal ainda é apenas uma ameaça, cujo teor consta de notificação, cabe imedita propositura de ação com pedido de liminar para evitar qualquer dano de natureza alimentar.

Luciane de Castro Moreira

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